sexta-feira, 21 de janeiro de 2011
Moça com botas de borracha
A jovem jornalista escolheu o rumo de sua carreira antes mesmo de se formar: queria trabalhar com moda. Gostava da vida de desfiles, badalação, coquetéis, gente famosa. Entendia tudo de roupas, tecidos, tendências. Era também elegante, bonita, magra. Decidiu que seria uma nova Erika Palomino.
Mas a vida é quase sempre ingrata com os focas, e seu primeiro emprego foi o de repórter de Geral de um jornal impresso. Fazia de tudo um pouco: ronda policial em delegacias, matérias sobre buracos nas ruas, a tubulação do gás natural que explodiu. Toda noite, antes de dormir, chorava de tanto desgosto. Pensou em desistir, mas logo lembrou que a coisa poderia ser pior, poderia nem ter emprego, como vários de seus colegas da faculdade.
Numa tarde em que estava de bobeira na redação, foi chamada à mesa do pauteiro. Recebeu a missão de visitar a região da cidade mais afetada pelas chuvas daqueles dias, entrar na favela, ver o que sobrou, conhecer as histórias de quem perdeu tudo.
- Bonitinha como você é, vai fazer o maior sucesso no pedaço, brincou o pauteiro.
- Mas eu não tenho nem sapato adequado para entrar numa favela submersa.
O pauteiro lhe indicou uma caixa no chão, com um par bem velho de botas de borracha, uns dois ou três números maiores do que o pé da moça. Não tinha opção. Deixou a redação já com as botas nos pés e ainda ouviu algum engraçadinho cantarolar: “É isso aí”.
A água já havia baixado quando ela chegou à favela. Caminhou pelas vielas, observou o lixo, a lama, o sofrimento no rosto de cada pessoa que tentava salvar os restos. Foi ganhando coragem. Visitou vários barracos, conversou com muita gente, conheceu dramas variados, do fogão novinho das Casas Bahia que virou sucata ao menino que desapareceu no córrego. Foi até convidada a tomar um café no barraco da dona Elza.
- A senhora acredita que nós, jornalistas, podemos fazer alguma coisa para mudar a situação de vocês aqui?
- Ninguém muda nada aqui, não, minha filha. Faz mais de 15 anos que a gente sofre com enchente. O bom é que, com os jornalistas aqui, a gente pode, pelo menos, falar mal das autoridades. Assim, a prefeitura vem mais rápido limpar a entulhada toda deste ano.
No barraco, saboreando o café feito de improviso, a jornalista conheceu o caçula de dona Elza que, quando crescesse, queria ser jornalista. Ou bombeiro. Achou graça. Tudo havia sido tão intenso na favela que ela até esqueceu que as botas grandes e velhas a incomodavam. Antes de partir, ainda teve tempo de brincar com um vira-lata sarnento, escorregar na lama e quase sujar a bunda.
Estava exausta e, à noite, antes de dormir, olhou para o teto e sorriu como havia muito tempo não sorria. Pensou até que a vida da Erika Palomino deveria ser, assim, meio sem graça, sabe?
20 comentários:
- Kassia Nobre disse...
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Muito Bom! nada como o jornalismo pé na lama para acreditar que essa profissão é divertida sim! E, principalmente, única
- 21 de janeiro de 2011 às 10:43
- Thiago Quirino disse...
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Pois é, agora vai saber o que "jornalismo de verdade" quer dizer!!! Já me vi na situação a acima e confesso que relatar a realidade de uma catástrofe não é nada "legal", mas dá uma baita satisfação.
- 21 de janeiro de 2011 às 10:54
- Guilherme Diogo Rodrigues disse...
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Muito bom mesmo, isso é bem verdade. Só quando você enfrenta algo assim é que sabe o quanto é enriquecedor ser um jornalista!
Abraços.
Ps: Obrigado por responder a minha duvida quando ao jornalismo declaratório! - 21 de janeiro de 2011 às 10:56
- Filipe disse...
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Textos cada vez mais profundos e intensos.
Este, por sinal, nos fez sentir mais orgulhoso da profissão que exercemos
Parabéns! - 21 de janeiro de 2011 às 10:59
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Ser jornalista, em circunstâncias desse tipo, nos dá oportunidade de enxergar melhor as pessoas, suas necessidades e, melhor ainda, descobrir a força que há em cada uma delas. Afinal, o mundo lindo, perfeito, colorido e de alta custura, é só um pequeno corte...
- 21 de janeiro de 2011 às 11:49
- Tati disse...
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Nossa, agora eu me vi neste post. Amo minha profissão e, principalmente, "ajudar" quem necessita.
- 21 de janeiro de 2011 às 11:50
- Unknown disse...
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Caralho, que blog bom! Voltarei sempre. Parabéns.
- 21 de janeiro de 2011 às 16:31
- Aline Wernke disse...
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Duda sou tua fã desde sempre. Quando leio textos que acho fabulosos, mando para o resto da redação. Com esse fiz diferente, copiei para guardar, pois ele fala exatamente de como eu via a vida antes da editoria de geral e como vejo agora. Muito obrigado, com os dramas do nosso dia a dia, tu consegues dar força pra quem tenta fazer "jornalismo de verdade".
- 21 de janeiro de 2011 às 17:12
- Joyce Noronha disse...
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Mt bom!
- 21 de janeiro de 2011 às 18:46
- Ana Luiza disse...
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Muito massa a história!!!
Realmente, a gente sofre, mas sempre tempos a oportunidade de ver que o nosso sofrimento é sempre muito pequeno diante dos sofrimentos dos outros. - 23 de janeiro de 2011 às 21:59
- Duda Rangel disse...
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Jornalista tem que colocar o pé na lama, nem que seja uma vez na vida. Esta é uma espécie de batismo na profissão.
Agradeço todos pelos comentários. Aline, legal saber que o texto será guardado. Valeu pelo carinho. Abraços, meu caros! - 24 de janeiro de 2011 às 19:30
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Duda, estou apaixonada com seu blog... Pelo menos na redação que a personagem trabalha tem botas. Na minha, nem isso. Uma vez fui fazer uma matéria em um lugar assim e quem acabou emprestando as tais botas de borracha foi o entrevistado, que ainda tirou uma foto minha e falou: leva pra sua editora-chefe criar vergonha e comprar esses sapatos para a redação.
- 25 de janeiro de 2011 às 23:08
- Duda Rangel disse...
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Oi, Priscila, obrigado pelo carinho. E a editora-chefe ficou sensibilizada e comprou botas para a redação??? Beijos.
- 1 de fevereiro de 2011 às 16:23
- Marina Lukavy disse...
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Esse é o sentimento que nutre esta tão sofrida e prazerosa profissão... E é o que nutre principalmente a nossa existência.
Parabéns pelos seus textos! Impossível não se identificar! - 3 de fevereiro de 2011 às 13:41
- Duda Rangel disse...
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Oi, Marina, muito obrigado. Beijos.
- 8 de fevereiro de 2011 às 19:49
- Juliane Istchuk disse...
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Caracólis, to na profissão certa!
Adorei o texto e a Jornalista parece alguém que conheço (eu)..rsrsrs
Justamente essas situações que nos fortalecem a continuar ajudando de alguma forma nossa população!
Juliane Istchuk
juliane7.wordpress.com - 17 de fevereiro de 2011 às 17:22
- Duda Rangel disse...
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Olá, Juliane. Sucesso na carreira. Beijos.
- 18 de fevereiro de 2011 às 20:41
- Unknown disse...
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Ela sorriu no final de tudo e eu chorei agora (apenas uma lágrima) no final do texto só por lembrar de quantas enchentes conheci...coisas da vida, como diria Roberto.
- 17 de janeiro de 2012 às 17:03
- SÔNIA PILLON disse...
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hahaha Essa é a história da minha vida de repórter! Reportagem de GEral é isso mesmo! Chove, que chove,que chove... Se for em Santa Catarina , então...
- 17 de janeiro de 2012 às 23:39
- Duda Rangel disse...
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Golby e Sônia, como diz aquele provérbio jornalístico, depois da tempestade, vem a matéria de enchente. E todo ano é a mesma coisa. Abraços.
- 18 de janeiro de 2012 às 21:00