Seu Nonô tinha 92 anos, cinco filhos, 11 netos e um fígado maltratado pela bebida. Desde que perdeu a mulher, há quase duas décadas, ganhou dois vícios: a cachaça e a leitura do obituário do jornal. Lia todo dia, religiosamente. Gostava de estar por dentro das novidades. Quem empacotou dessa vez? Algum conhecido? Pela imprensa, soube da morte de amigos distantes, amores platônicos. Ficava triste, chorava, mas suspirava. “Antes eles do que eu”.
O velhinho levantava cedo para pegar o jornal. Nem via a manchete de capa. Seguia diretamente para a seção dos mortos. Conferia todos os nomes, um por um, de homens e mulheres, de todas as idades. “Coitado, esse foi cedo, tinha só 21 anos”, lamentou certa vez. Outros, privilegiados, viviam quase um século. Por que tamanha injustiça? Ele mesmo admitia que estava no lucro. Já passava dos 90, apesar de sua queda pelo álcool.
Nonô sempre imaginou como seria o seu obituário. Escreveu o texto e orientou a família sobre a maneira como queria ver o anúncio fúnebre no jornal. Tinha de ser em letras garrafais, em negrito, para que todos os vivos soubessem de sua partida. “Aposentado não enxerga essa letrinha de merda que publicam por aí”, dizia.
Numa manhã, Nonô pegou o jornal e não encontrou a tal seção dos mortos. Teve uma sensação estranha. Em quase 20 anos, isso nunca tinha acontecido. Pegou o telefone e ligou para a redação. A voz estava embargada. Ficou sabendo, então, que o velhinho que fazia o obituário tinha morrido na tarde anterior. Desligou o telefone e foi para o quarto dormir. Desejava acordar só na manhã seguinte. Naquele dia, nem bebeu sua cachaça.
terça-feira, 26 de maio de 2009
5 comentários:
- Marcio Hasegava disse...
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Que bela história!
- 26 de maio de 2009 às 14:44
- The Ideas of a Vintage Doll disse...
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Depois escreva qual foi o obituário que ele escolheu pra si.
Beijos - 27 de maio de 2009 às 15:26
- Mônica disse...
- Este comentário foi removido pelo autor.
- 27 de maio de 2009 às 21:23
- Mônica disse...
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Vejo três hipóteses para o fim de Nonô :
*decidiu morrer de abstinência?
*decidiu esperar para morrer dormindo?
*ou desistiu de ler jornal?
Abraços - 27 de maio de 2009 às 21:24
- Ewerton Martins disse...
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E poderíamos acrescentar que, provavelmente, no dia seguinte ele também não se levantou.
- 5 de junho de 2009 às 18:22
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