sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010
Moça com botas de borracha
Mas a vida é quase sempre ingrata com os jovens jornalistas, e seu primeiro emprego foi o de repórter no caderno geral de um jornal impresso. Pensou em desistir logo no dia de estréia, mas logo lembrou que a coisa poderia ser pior, poderia nem ter emprego, como vários de seus colegas da faculdade. Melhor isso do que nada. Fazia de tudo um pouco: ronda policial em delegacias, matérias sobre buracos nas ruas, a tubulação de gás natural que explodiu, uma passeata de garis no centro da cidade em protesto ao Boris Casoy. Brincadeira, eles só queriam melhores salários.
Um dia, estava de bobeira na redação, quando foi chamada à mesa do pauteiro. Recebeu uma inglória missão: visitar a região da cidade mais afetada pelas chuvas daqueles dias, entrar na favela, ver o que sobrou, conhecer as histórias de quem perdeu tudo.
- Bonitinha como você é, vai fazer o maior sucesso no pedaço, brincou o pauteiro.
- Mas eu não tenho nem sapato adequado para entrar numa favela submersa, retrucou.
O pauteiro lhe indicou uma caixa no chão, com um par bem velho de botas de borracha, uns dois ou três números maiores do que o pé da moça. Melhor isso do que nada. Já estava se acostumando a este tipo de resignação. Deixou a redação já com as botas enormes nos pés e ainda ouviu alguém cantarolar: “É isso aí”.
A água já havia baixado quando ela chegou à favela. Muito lixo, lama, cheiro forte. Meio desajeitada com tudo, caminhou pelo lugar, observou cada detalhe com atenção, a expressão no rosto de cada pessoa que trabalhava para salvar o que restou. Foi ganhando coragem. Visitou vários barracos, conversou com muita gente, conheceu dramas variados, do fogão novinho das Casas Bahia que virou sucata ao menino que desapareceu no córrego. Foi até convidada a tomar um café no barraco da dona Elza, uma velha muito simpática.
- A senhora acredita que nós, jornalistas, podemos fazer alguma coisa para mudar a situação de vocês aqui?
- Ninguém muda nada aqui, não, minha filha. Faz mais de 15 anos que a gente sofre com enchente. O bom é que, com os jornalistas aqui, a gente pode, pelo menos, falar mal das autoridades. Assim, a prefeitura vem mais rápido limpar a entulhada toda deste ano.
O café no barraco da dona Elza, feito num fogo improvisado, foi longo. A jornalista teve oportunidade de conhecer toda a família que ali morava, inclusive o caçula que, quando crescesse, queria ser jornalista. Ou bombeiro. Tudo havia sido tão intenso na favela que ela até esqueceu que as botas grandes e velhas a incomodavam. Antes de partir, ainda teve tempo de brincar com um vira-lata bem sujo, escorregar na lama e sujar a bunda.
Naquela noite, antes de dormir, estava feliz, ao contrário dos primeiros dias no jornal. Pensou até que a vida da Erika Palomino deveria ser, assim, meio sem graça, sabe?
11 comentários:
- Unknown disse...
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Perfeito, parabéns, estou me tornando um leitor diário do seu Blog. Sucesso!!!
Erick Mello - 26 de fevereiro de 2010 às 12:29
- Fer Suguiama disse...
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Ah, como esse blog me diverte! É um humor sincero e sagaz. Bem a sua cara, Duda.
Feliz aniversário, blog! - 26 de fevereiro de 2010 às 20:23
- A Viajante disse...
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Ah...que bacana ler isso...penso que, qdo menos apostamos em algo, melhor nos saimos, mais felizes nos tornamos..viva o inusitado...bom mesmo é não criar expectativas!
- 26 de fevereiro de 2010 às 20:30
- Talita Cruz disse...
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Olha só, é impressão minha ou foi um post otimista??..rsrs
as reviravoltas da vida...adorei o post Duda, bjss! - 28 de fevereiro de 2010 às 18:05
- Unknown disse...
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Aii que lindo! Fiquei tocada! Queria estar no lugar dela também!
- 2 de março de 2010 às 10:59
- Isa. disse...
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um post otimista. haha
adoooreei! - 2 de março de 2010 às 15:29
- Duda Rangel disse...
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Erick, seja muito bem-vindo ao blog, meu caro. E obrigado pelas palavras.
A viajante, viva o inusitado sempre!
Fernanda e Derla, vocês são muito meigas mesmo!
Lita e Isa, o post realmente ficou otimista. Meus Deus, será que eu estou ficando doente? :)
Beijos e abraços do Duda - 2 de março de 2010 às 19:50
- marifreica disse...
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... aí, no dia seguinte, ela pegou a matéria do buraco de rua para fazer, que não rendeu mais de 1500 toques, e ela se lembrou como é chato trabalhar no caderno de Cidades.
- 4 de março de 2010 às 23:26
- Duda Rangel disse...
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Mari, você captou a essência da vida "bipolar" de um jornalista... rs
- 5 de março de 2010 às 18:04
- Ismale Trabuco disse...
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haah valew muito a inspiração!
- 25 de junho de 2010 às 16:16
- Duda Rangel disse...
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Caro Ismael, bem-vindo ao blog!
Abraço do Duda - 29 de junho de 2010 às 21:56