quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Entrevista


A lembrança da briga com o namorado vem à cabeça, mas ela logo esquece. O assessor de imprensa ao lado parece não existir. É atenção total no entrevistado. Que fala e fala e fala. Quase sem pontos, quase sem vírgulas. A repórter faz anotações no velho bloquinho, com espiral que insiste em fugir pelos cantos. Mão agitada. Letra miúda que cresce. Rasteja. Da esquerda pra direita, de cima pra baixo, em linhas imaginárias. Riscos, rabiscos. Registros cifrados. Palavras que morrem pela metade. Ai, meu Deus, que garrancho! Enche uma página. Vira pra outra. E mais outra. Com dedos ágeis. Olha pro entrevistado. Pro bloquinho. Pro entrevistado. Pro bloquinho. Ã-hã! Hmmm hum... A caneta falha. Droga! Vai me deixar na mão bem agora? Bic azul, quase seca, de tampa amolecida a dentadas. Mais perguntas. Copo de água gelada. O senhor tem uma caneta pra me emprestar? Mico. Jeito sério, pra impor respeito. Sei, compreendo, perfeito, claro, lógico. Não é “pra mim fazer”. É “pra eu fazer”. Agora o entrevistado fala de um assunto desconexo. Ela tem um olhar fixo e perdido pros lábios dele. O assessor continua lá, invisível, empalhado. A repórter dá uma viajada. Lembra vagamente do namorado safado. Acorda. Vasculha o roteiro de perguntas. Essa já foi. Essa também. Morde a unha. Será que vai dar tempo de fazer mais uma? Tem que dar tempo! Ainda falta a melhor, aquela certeira, de tocar na ferida, de quebrar a perna de entrevistado.

9 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom. Realidade total. Acontece também com gravador, acaba a pilha e você revira a bolsa e nada, daí vai para o bloquinho. Se tem bloquinho, não tem caneta ou vice-versa.
Dureza que conforta a publicação no dia de amanhã.

Parabéns.

Mariana Negrini

Ricardo Curitiba disse...

Gosto de assessor de imprensa que fica como espantalho. Geralmente ele fica do lado, segurando o braço do entrevistado, puxando para encerrar a entrevista a cada ponto ou virgula. Neste caso fica a questão: fazer a pergunta certeira no final e correr o risco de não ter tempo de fazê-la ou perguntar logo no início com a possibilidade de acabar a entrevista já por ali?
Em ambos os casos, a primeira coisa que vem a cabeça depois da entrevista é ''assessor filho da mãe. Acha que é jornalista e só me fode''

Camila Sol disse...

kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
lembrei da minha última entrevista. Só não paguei o mico da caneta.

Chrispimless disse...

Mas afinal quem é o entrevistado? Qual o objeto de teu trabalho? Ou será emprego?
Jornalistas hoje é jóia rara.
A estrada é longa e o caminho deserto, com namorados, poemas e traçados invisíveis de canetas a laser.

Jussara Correia disse...

Genteeeeeeee... eu me vi nisso!

A Viajante disse...

Se eu fosse uma jornalista,iria ser exatamente com esse perfil! Bj

Tati disse...

às vezes acontece isso comigo, enquanto o entrevistado fala, eu viajo nas idéias...

Duda Rangel disse...

Em uma entrevista, por mais que o jornalista esteja preparado, sempre pode rolar um mico, um imprevisto. Ossos do ofício.
Ricardo, sou a favor de amolecer o entrevistado com o papo e guardar a pergunta certeira para o final. Ou para o momento que julgar mais adequado, numa "deixa" do entrevistado. Vale o senso de oportunidade. Abraços a todos. Valeu pelas mensagens!

Anônimo disse...

Me identifiquei totalmente, com meu bloquinho amassado e as frases desconexas, cortadas, que dançam na página cheia. Vale anotar até nas bordinhas. Adorei o blog, eu me diverti lendo a realidade nossa de cada dia.
Marianna Marimon