quinta-feira, 30 de abril de 2009

Filhos da pauta jamais!


Ensina o bom jornalismo que nós não podemos ser “filhos da pauta”. Isso significa que um repórter, ao deixar a redação, não deve ficar escravo apenas da matéria que lhe coube apurar. Se, no meio do caminho, algo muito bombástico acontece, ele não pode ignorar tal imprevisto. Jornalista tem de estar de antena ligada o tempo todo, mesmo sem ganhar hora extra.

Certa vez, fui pautado para cobrir a festa de uma central sindical pelo Dia do Trabalho, um grande espetáculo para o povão, com sorteio de prêmios, churrascão e cerveja. A ideologia ficou no passado. “Duda, vai rolar até show do Latino, do KLB e de alguns grupos de pagode. Só te dei esse privilégio porque você é meu amigo”, cutucou meu pauteiro, com um sorriso de sacanagem.

No carro do jornal, enquanto arrastava meu corpo até o famigerado evento, fiquei preso no trânsito. Sem saída. Mas até em feriado? A avenida foi ocupada por um grupo de manifestantes naturistas ultra-radicais que defendia o direito de andar nu pelas ruas de São Paulo. "Pelados, unidos, jamais serão vestidos." A PM decidiu prender o líder do protesto, um senhor que, apesar da privação de roupas, não devia tomar sol naquela bunda branca havia muito tempo. A pancadaria começou.

Avisei meu editor pelo telefone e minha pauta foi mudada. A cobertura dos peladões teve muita tensão e nenhum pudor, mas nada melhor do que não ter de ouvir o Latino cantar. E ao vivo!

Num outro emprego, na área de Cultura, fui escalado para acompanhar o vernissage de um badalado artista plástico ítalo-chileno, com um trabalho conceitual sobre a pintura rupestre e sua relação com a pós-modernidade. Que puta roubada! Mas, desta vez, nenhuma pauta inesperada rolou para me livrar da indecifrável e torturante obra de Pepe Meléndez. Cobrir um show do KLB naquela noite até que não teria sido tão ruim assim.

quarta-feira, 29 de abril de 2009

A culpa dos outros


O ser humano, dono de uma capacidade infinita de fazer merdas, de forma consciente ou não, aprendeu que a melhor defesa é sempre colocar a culpa nos outros. Você nunca está errado no trânsito, o casamento é arruinado pelo parceiro, o treinador é quem não sabe escalar o time. O sujeito solta um peido e, imediatamente, olha para o lado com ar indignado, procurando o responsável por tamanha indelicadeza.

Lendo o noticiário dos últimos dias, fiquei com a certeza de que tem coisa pior do que uma iminente pandemia de gripe suína. O quê, por exemplo? Gente como o Ciro Gomes, o maior humorista do Ceará de todos os tempos, e o Michel Temer, um dos líderes do PMDB (Partido do Me Dei Bem). Não agüento mais ver estes nobres deputados defenderem, com aquela cara de quem peidou e olhou para o lado, seus coleguinhas em escândalos e mais escândalos. E, naturalmente, a culpa de toda essa lama sobrou para nós, jornalistas.

Será que essa gente nobre nunca terá um pouco de vergonha na cara? Vai sempre querer intimidar os jornalistas e acabar com o nosso legítimo direito e dever de denunciar toda a picaretagem que há anos, décadas, faz parte da cultura do Congresso? Se a imprensa adora fazer o papel de abutre a rondar a carniça, como muitos dizem com razão, por que não assumir logo a podridão e tratar de moralizar a coisa?

Os jogadores de futebol, por sua vez, culpam os jornalistas pela falta de privacidade, mas não têm o menor cuidado ou pudor ao andar por aí com travecos ou com a Mulher-Picanha. Muitos artistas culpam os críticos, mas esquecem que seu ego é maior do que o seu talento. Daqui a pouco seremos os responsáveis por todas as mazelas da humanidade, os novos mordomos.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Viva a boca-livre


Quando eu ainda era um jornalista empregado, geralmente comia mal, gastronomicamente falando. Muita porcaria pelas ruas da cidade, entre uma entrevista e outra. Mas havia um momento de redenção. Sim, havia! Este momento respondia pelo nome de “filé mignon ao molho madeira com batatas (prussianas ou noisettes) e arroz”, prato clássico servido em eventos que reúnem jornalistas, conhecidos adoradores de uma boca-livre.

Estudiosos do comportamento humano jamais conseguiram explicar este fenômeno jornalístico. Seria uma forma de vingança contra a miséria opressiva cotidiana? Ou o simples desejo de levar vantagem? A única coisa que se sabe, após décadas de pesquisas, é que o gene responsável pela boca-livre é o mesmo ligado à vontade insana de ganhar presentinhos e jabás em geral.

Conheci jornalista que freqüentava aqueles congressos bacanas de empresários só para comer. O encontro com o filé mignon ao molho madeira era sagrado. Ninguém se preocupava se, em alguma mesa naquele salão, uma informação que fosse estremecer o mercado estivesse sendo revelada.

Os organizadores de tais eventos faziam questão de isolar os jornalistas em mesas pelos cantos, versão mais moderna do vale dos leprosos. Nelas se juntavam repórteres, cinegrafistas, fotógrafos e alguns motoristas que, vez ou outra, também participavam da boca-livre.

Seu Nelson era um dos meus motoristas preferidos, um velho bigodudo e bonachão que também tinha uma queda pela comida boa a custo zero. “Ô, seu Duda, dá um jeitinho de eu almoçar lá com vocês.” Seu Nelson dividiu a mesa com os jornalistas inúmeras vezes. Não falava nada. De boca sempre cheia, apenas fazia um sinal positivo com o polegar para indicar que o filé mignon e as batatas estavam ótimos. E como sujava aquele bigodão com molho madeira.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

O que a faculdade não ensina


Enquanto perdemos tempo com o blablablá sobre a obrigatoriedade (ou não) do diploma, uma outra questão, até mais importante, fica em segundo plano: a péssima qualidade dos cursos de Jornalismo. Por isso, deixo aqui sugestões de algumas disciplinas, com seus temas de estudo, que poderiam ajudar os jovens coleguinhas a enfrentar, de maneira menos dolorosa, a realidade de nossa profissão.

Jornalismo Contemporâneo: Questões de Sobrevivência

– Aprenda a ser ágil em uma redação cada vez mais enxuta: a arte de escrever três matérias ao mesmo tempo.
– É possível decolar na carreira tendo um péssimo texto? A estratégia de dar para o chefe ainda funciona?
– O desafio de trabalhar pra caralho e sem folga, e ter uma vida saudável.
– Regras básicas para se tornar um assessor de imprensa eficiente e feliz, mesmo odiando este tipo de trabalho.

Teoria Geral da Economia para Enforcados

– Como fazer o seu mísero salário render até o fim do mês.
– Complementando a renda: fazer frila ou vender o corpinho? Os prós e contras de cada opção.
– Evite gastos desnecessários: a arte de decorar sua casa apenas com jabás.
– Plano de carreira na redação: mito ou realidade?

Psicologia Aplicada à Desgraça Cotidiana

– Nunca serei um fodão da TV: a melhor maneira de lidar com as frustrações.
– Como tomar uma porrada de furos da concorrência e não se sentir um merda.
– Maximizando a força interior: sou um fracassado, mas não cometi suicídio.
– Não deixe a sensação de poder subir à cabeça: a famosa frase "sabe com quem você está falando?" é uma grande bobagem.

Sociologia do Caos na Pós-Modernidade

– A arte de trabalhar em hard news e ver o crescimento dos filhos (se tiver tempo de fazê-los).
– Os plantões e a cornitude: estudos de caso.
– Como ter vida social fora da redação, sem precisar interagir apenas com jornalistas.

Elementos Jurídicos no Jornalismo: uma Introdução

– Crimes sexuais: comer a estagiária pode dar cadeia?
– Direito trabalhista: vale a pena colocar seu empregador no pau pelas horas extras que não foram pagas?
– Como transformar sua condenação por calúnia em doação de singelas cestas básicas.


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terça-feira, 21 de abril de 2009

Entrevista com o Torresmão


Um amigo, competente repórter policial, chegou ao boteco especialmente eufórico naquela noite. No dia seguinte, faria uma entrevista exclusiva e inédita com o chefão do crime organizado, Wellington Pereira, o Torresmão. O bandidão era um excelente homem de negócios e famoso pela violência, o tipo clássico que, quando criança, teria sido capaz de matar os próprios pais só para ir ao baile dos órfãos. Talvez até tenha feito isso. O Torresmão era metido com o tráfico de drogas, armas, prostituição. Ah, e torcia pelo Corinthians.

O papo seria no QG do Torresmão, que ficava em algum lugar que ninguém conhecia. Foram meses e meses de negociação com o Silvinho de Assis, o Azeitona, bandido que acumulava a função de assessor de comunicação da organização. Em tempo: o Azeitona não tinha diploma de jornalista.

- Duda, vai estar todo mundo lá, disse o meu amigo. O Valdenir de Souza, o Cabeção, é o cérebro do grupo, o cara do planejamento, da logística e tal; o Paulo Cordeiro, o Paulinho Motoserra, é o responsável pelo departamento de execuções; o Gilbertinho Assunção, o Beringelão...

Ensaiei perguntar por que “Beringelão”, mas desisti.

A entrevista estava cercada de mistério. Meu amigo encontraria com membros do bando em uma estação de metrô. De lá, seguiria com os olhos vendados em um carro até o QG do Torresmão. Parecia até uma entrevista com o chefão de um daqueles grupos terroristas árabes que bombam por aí.

Antes de o papo começar, o Azeitona, eficiente assessor de comunicação, avisou que já havia levantado todas as informações pessoais do meu amigo. Sabia até onde sua filhinha estudava. A recomendação era para não vacilar. Apesar do tom ameaçador do início, a entrevista foi tranqüila. O Torresmão falou da estrutura empresarial de sua organização, das propinas que pagava aos policiais, filosofou, comentou futebol. Disse até que gostava dos jornalistas porque muitos eram seus clientes mais fiéis de pó.

Ao fim da entrevista, o Azeitona fez um sinal com a cabeça para o Torresmão, que anunciou então sua última exigência. Queria ler toda a matéria antes de ser publicada. Meu amigo, que em toda sua carreira jamais deixara alguém cometer tamanha afronta, ficou indignado. Se nem ministro de Estado interferiu em seu trabalho, não seria um bandido, um vagabundo daqueles que faria isso. Olhou o Torresmão nos olhos e disparou:

- Quer que eu mande por e-mail ou por fax?

sexta-feira, 17 de abril de 2009

A muvuca


O corredor estreito que ligava a sala do dotô delegado lá nos fundos à entrada do distrito policial estava abarrotado de repórteres, fotógrafos e cinegrafistas, gente sentada no chão, encostada na parede encardida. Alguém soltou o famoso “tá vindo, tá vindo” e todo mundo se alvoroçou. O empresário, acusado de uma fraude gigante contra o sistema financeiro, deixava a sala após seu depoimento. Estava acompanhado do dotô advogado, com seu indefectível gel nos cabelos e a certeza de que apareceria em todos os programas de TV.

A muvuca estava formada. Todo mundo querendo falar com o empresário. Atmosfera sufocante. O sujeito mal conseguia andar, espremido por aquele bolo de jornalistas.

A cena reunia personagens pitorescos. Tinha o repórter que, para aumentar a renda mensal, trabalhava para uma emissora de TV e duas emissoras de rádio. Tinha de dar conta, no meio do caos, de segurar dois microfones e um gravador. Se fosse um daqueles deuses hindus cheios de braços, tudo seria mais fácil. Mas não era. Havia também aquele repórter baixinho, que praguejava contra este tipo de cobertura. Era sempre engolido pela massa.

A bela e jovem repórter de TV era também fresca e reclamava de tudo. Fazia ares de quem freqüentava a Oscar Freire, mas aquele seu tailleur rosa denunciava sua pobre condição de jornalista. Decerto, fora comprado numa liquidação da Riachuelo. Foi ela quem soltou um grito histérico quando um cinegrafista descuidado bateu de leve com a câmera em sua cabeça. Gemeu, mas não tirou os olhos do empresário. Questão de sobrevivência.

O empresário, que se esquivava dos microfones para não perder um dente, não falava nada. Já tinha sido instruído pelo dotô advogado. Nem tinha como falar. Eram muitas perguntas, simultâneas, cruzadas, confusas. Um fotógrafo, que andava de costas abrindo o caminho, tropeçou e caiu na saída da delegacia. Se não fosse ágil, teria sido pisoteado. O empresário foi embora, mudo. Os jornalistas, ofegantes, amarrotados e frustrados, tratavam de se recompor.

- Quatro horas nessa delegacia e o filho-da-puta não fala porra nenhuma, protesta um colega.

O repórter dos dois microfones e um gravador buscava agora organizar aquele monte de equipamentos e cabos. O baixinho perguntava a alguém mais alto se tinha perdido algum detalhe importante. E a jornalista fresca da TV, ao mesmo tempo em que massageava a cabeça, dava-se conta de que, no meio daquela confusão, alguém passara a mão em sua bunda. Pela pegada, sabia que não havia sido sem querer. Mas desta vez ela não reclamou.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Quem tá preocupado com a crise?


A exploração do mundo das celebridades ganha, a cada dia, mais espaço em nossa mídia. Falo, particularmente, dos sítios de fofoca, que se proliferam aos montes pela internê. Abordam, em geral, temas de grande relevância para a humanidade, como as novidades das novelas, festinhas de jogadores de futebol com travestis ou a separação de algum casalzinho de famosos. Tudo com muito glamour, é claro.

São alimento para leitores que adoram bisbilhotar a vida alheia ou, simplesmente, buscam algum assunto interessante para debater na casa da sogra, durante o almoço de domingo. Eu adoro os flagras de atrizes gostosas que vão sintetizar a vitamina D de seus corpos em alguma praia carioca. Não me prendo muito aos textos. Valorizo mais as fotos dos paparazzi.

Em época de crise, a mídia da fofoca é a salvação dos artistas que chafurdam no limbo. E dos jornalistas desempregados também. Hoje em dia, qualquer subcelebridade tem um assessor de imprensa, que não precisa de muita criatividade para gerar pautas. Mas deve ser um porre escrever um release sobre a morte do cachorrinho de uma mulher-fruta ou sobre o novo corte de cabelo de uma apresentadora decadente de TV.

E como sofrem nossos coleguinhas que trabalham nestes sítios! É cruel manter um contato mais inteligente com muitos dos entrevistados. Eu, que já atuei na imprensa esportiva, não sei o que é pior: conversar com um jogador de futebol ou uma celebridade que agoniza.

- Tá sumido?

- Pois é, tô dando um tempo, estudando muito...

- Projetos?

- Tô com um projeto bárbaro que deve rolar em breve, mas, por enquanto, é segredo, não posso revelar... Brasil, me aguarde!

- E TV? Quando vai voltar a fazer?

- Você sabe que TV é tudo, é onde eu fico mais à vontade. Tô esperando convites...

Os sítios de fofoca fomentam discussões filosóficas. Será que o Max, o novo milionário do BBB, é viado? Teria Alexandre Frota desistido mesmo dos filmes pornôs? Adriano, o Imperador, cheira ou não cheira quando sobe o Morro da Chatuba? E tem gente que ainda está preocupada com a crise econômica mundial.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Me dê motivo


Na enquete que acaba de ser concluída – Qual entrevistado mais te deixa puto? – a opção “O que pede para ler e aprovar o texto que você escreveu antes da publicação” venceu com 47% dos votos, uma folgada vantagem para as demais alternativas. É aquela coisa: para ler e corrigir as nossas cagadas já basta o editor. Nós, jornalistas, odiamos intromissões.

A nova pesquisa, já no ar, quer saber o que, afinal de contas, levou você a decidir ser um jornalista. Não vale mentir para amenizar a dor. O máximo que está permitido é pedir ajuda aos universitários, desde que eles sejam estudantes de Jornalismo. Se alguém tem alguma outra razão que não foi relacionada entre as opções, comente aqui ou se cale para sempre. Bons votos!

quinta-feira, 9 de abril de 2009

O lado B da vida


Tempinho atrás, ao folhear a revista Piauí, me deparei com uma matéria sobre o Meia Hora, diário carioca de conteúdo popularesco e manchetes bem-humoradas. A reportagem citava a cobertura da polêmica separação de Luana Piovani e Dado Dolabella. O título dizia: “Luana não tem mais Dado em casa”. Genial. No lugar de “Dado”, colocaram uma foto do pseudo-ator.

O Meia Hora me trouxe lembranças do finado Notícias Populares, ou simplesmente NP, que circulava em São Paulo. Era aquele que bastava torcer para sair sangue. Na seção policial, não faltavam imagens de cadáveres destroçados. Havia notícias pitorescas. As moçoilas seminuas que embelezavam suas páginas eram, na maioria, trabalhadoras da Rua Augusta. Como eu apreciava a apimentada cobertura do Carnaval! E não posso me esquecer de mencionar o curioso caso do bebê-diabo de São Bernardo. Sempre fui um admirador do lado B da vida!

Gostava também da coluna de Voltaire de Souza, com seus dramalhões humanos que quase sempre terminavam em desgraça. Talvez um cruel retrato do cotidiano de alguns leitores. O NP era célebre por seus textos cheios de gírias e manchetes impagáveis, ótimas sacadas de criativos jornalistas. Pérolas como “Bicha põe rosquinha no seguro” e “Broxa torra o pênis na tomada”. Havia ainda as promoções, do tipo “Compre um presentão para a mulher da sua vida. Mas não esqueça a lembrancinha de sua esposa”.

Certa vez, em sua capa, o NP estampou uma foto de Joana Prado, a então famosa Feiticeira, apenas de véu, brincos e salto alto. A genitália desnuda estava coberta por uma das mãos, onde se lia uma instigante chamada: “Veja a chana na página 5”. Curioso, voei para o destino indicado. Lá, encontrei uma entrevista com Chana, a goleira da seleção brasileira de handebol. Mijei de tanto rir, apesar da frustração. Se eu quisesse ver a Feiticeira por completo teria de ir a uma daquelas bancas vagabundas do centrão, verdadeiros sebos da libertinagem, que vendem Playboys antigas com páginas coladas.


terça-feira, 7 de abril de 2009

Quem disse que é tudo uma bosta?



Ser jornalista é abdicar...

...de amigos, amores e família em ocasiões especiais; de morar num duplex no Morumbi; de feriados e fins de semana; de refeições saudáveis; de uma vida saudável de uma forma geral. É abdicar daqueles bônus especiais que só existem no mundo corporativo; de um presente estável, de um futuro estável. Abdicar, muitas vezes, de ter carteira assinada, direitos trabalhistas, um plano de carreira; de um dia ser capa da revista Exame como o executivo do ano.

Mas ser jornalista também é ter o privilégio de...

...conhecer gente de todas as partes do mundo; conhecer todas as partes do mundo (com o dinheiro do patrão); vivenciar a História que está sendo construída; aprender muita coisa sobre muitos assuntos diferentes; questionar; protestar; derrubar o técnico da Seleção Brasileira de futebol; contar histórias fascinantes; denunciar histórias arrepiantes; não ter rotina; não ter de usar terno e gravata no dia-a-dia; cagar para as regras de etiqueta. É ter o privilégio de assistir àquele show concorrido sem pagar nada; de um dia contar para os netos todas as aventuras malucas que viveu; de beber e celebrar a vida nos botecos mais suspeitos da cidade; de ganhar mal e, ainda assim, amar sua profissão.

Feliz dia do jornalista a todos nós!

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Outdoor ambulante


Jornalista ganha mal de uma forma geral. Entre todos, os repórteres de rádio são talvez os que mais têm medo de olhar a conta bancária no fim do mês. Com exceção dos fodões da área, a maioria trabalha muito e recebe pouco. Orlando César, por exemplo, nunca foi um fodão. Sempre viveu nos campos de futebol, com microfone em punho, roupa surrada, barrigão de cerveja e óculos remendados com fita isolante. No interior, onde começou a carreira, aprendeu que, para fazer o que gosta e sobreviver, era preciso muito jogo de cintura.

Mais experiente e já na capital, Orlandão, como era conhecido, decidiu que viraria um outdoor ambulante para ganhar uns trocados a mais. No começo, arrendou apenas a cabeça – usava um boné com o nome de um patrocinador. Estava sempre à vista de alguma câmera de televisão. Ficava atrás do entrevistado, em busca dos holofotes. Aos poucos, alugou sua camisa. Diziam que ele até engordou apenas para prospectar novos anunciantes.

“Você é um papagaio de pirata”, brincavam os colegas de jornal impresso e TV. “Não são vocês que pagam as contas lá de casa”, respondia Orlandão, com seu jeito rude, mas bem-humorado. Ele gostava dos clássicos, das grandes finais. Justificava que ser a sombra das estrelas era a garantia do leitinho das crianças. Foi garoto-propaganda de cachaça, loja de tinta, material de construção, oficina mecânica. Fez até campanha política.

O ápice de sua carreira foi trabalhar em uma copa do mundo. Em 98, desfilou por Paris com seu boné da Caninha Barrosinho. Na final, furou a segurança na zona mista de entrevistas e chegou a encoxar o craque Zidane. Como não falava francês, não entendeu nenhuma palavra que o carrasco do Brasil disse, mas apareceu em alguns jornais deste mundo. Foi a internacionalização da Barrosinho. Ganhou até um bônus por isso.

Hoje, com mais de 25 anos de profissão, Orlandão celebra a volta de Ronaldo ao futebol brasileiro. Se o jogador fará sucesso, não importa. O que interessa é que o Fenômeno será decisivo para ele terminar a reforma de seu sobrado.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Canino, demasiado canino


Se esse papo de reencarnação for realmente verdadeiro – preciso checar tal informação com fontes confiáveis do além –, quero voltar cachorro na próxima vida. Invejo o Nestor. Tudo bem que ele passou por uma fase difícil nos últimos tempos com a separação dos pais, mas, no geral, sua vida é boa. Essa coisa de ficar o dia inteiro dormindo, comendo, cagando e brincando me seduz. E o melhor: ser irracional nos dias de hoje é uma grande vantagem. Pensar e querer entender o mundo cansa demais.

Uma amiga iniciada na questão de outras vidas contou-me certa vez que sempre evoluímos. Ou seja, voltamos cada vez melhores na vida seguinte. Considerando que ser jornalista é o atual último estágio de minha evolução, tenho até medo de saber o que fui em minhas vidas anteriores.

Tive a oportunidade de passar o último fim de semana com o Nestor. Sua vida canina é demasiadamente simples. No parque, percebi que sua angústia máxima era levantar a perna pela décima vez em menos de cinco minutos e não ter mais o que mijar. Enquanto isso, eu pensava no aluguel a ser pago, no porre de ter de ir ao supermercado e no frila que precisava escrever (uma empolgante entrevista médica sobre o aumento da incidência das hemorróidas em países tropicais).

O domingo acabou e, com o coração apertado, deixei o Nestor na casa de minha ex. Ainda tive de ver a scooter amarela do outro estacionada lá. À noite, voltei ao meu apê de 49 metros quadrados e, antes de escrever a matéria, fiquei imaginando minhas prováveis vidas passadas. Será que eu era o cara que mandava os cristãos para os leões? Um cafetão na Belle Époque? Será que já fui argentino? Meu Deus, será que eu já fui argentino?